quinta-feira, setembro 07, 2017

Portugal e o referendo da Catalunha

Como sabemos, nós portugueses melhor do que ninguém, a "Espanha" não existe como nação; é um estado artificial, constituído por vários povos, originado pela união matrimonial de Isabel de Castela com Fernando de Aragão, os chamados "Reis Católicos", e cuja nova designação, tomada à velha Hispania romana, provocou o protesto de D. João II, que, obviamente, percebeu a intenção...


Enquanto estado de direito democrático, Portugal deverá evitar imiscuir-se numa questão interna de Espanha. Mas deve abster-se enquanto o diferendo se mantiver numa discussão política; se Madrid, numa decisão pouco inteligente e antidemocrática optar pelo bloqueio jurídico e, principalmente, pela repressão militar, aí Portugal tem o dever de, em primeiro lugar, oferecer os seus bons ofícios de mediação e, em última instância, solidarizar-se com o povo catalão, uma vez que está em causa um direito humano fundamental, reconhecido pela Carta das Nações Unidas: o da autodeterminação dos povos, que sobreleva qualquer disposição jurídico-constitucional.


À luz do bom e velho princípio de que "a soberania reside na Nação", Madrid perdeu ontem legitimidade de impedir a realização do referendo. Qualquer contenda que não se restrinja à esfera política e negocial acarretará a Madrid o ónus de potência ocupante.

12 comentários:

sincera-mente disse...

Resta saber se a constituição espanhola consagra esse tal princípio do local de residência da soberania...

R. disse...

Não deve consagrar, claro, tal como a nossa de '33 não consagrava outra realidade que não as colónias do Portugal do Minho a Timor...

Rui Ribeiro disse...

Me parece um excelente artigo. Talvez desde fora pareça que é um conflito entre ricos (catalães) e pobres (o resto de Espanha). Nada mais longe da verdade. O conflito é entre a Espanha beneficiada pelo franquismo, desde uma Transição sem revolução,inocua para os que governavam e para os seus seguidores(metade da Espanha actual), e a outra metade perdedora que continua sem voz nem voto. Ante a uniformidade da cultura unica,da manutenção dos privilegios dos mesmos de sempre, de umas leis sem criterio,que obrigam a uns a pagar (a outros poucos) e calar, alguns da metade perdedora ousaram tentar mudar Espanha em tempos recentes. Se cansaram de bater na mesma pedra e já nao existe mais remédio que ir-se ou que tudo de mantenha igual que desde 1939. O tempo passa e os laços que unem as duas Espanhas cada vez são mais finos.

R. disse...

Sim, é preciso não esquecer que o ´presidente da Generalitat catalã em 1939 foi fuzilado, e que os catalães, como os bascos e os galegos viram as suas línguas proibidas no ensino e no espaço público. Obrigado.

Jaime Santos disse...

O direito à autodeterminação não é absoluto e comparar a Constituição Espanhola atual com a Portuguesa de 33 parece-me um tanto ou quanto abusivo. Convém lembrar que na nossa própria CRP está consagrado o princípio da soberania popular, mas sujeito à Lei (o que quer dizer que a soberania popular não é absoluta, é aliás isso o garante dos direitos das minorias e dos próprios direitos individuais). Mas espero que se conceda aos catalães a possibilidade de escolha, tal como no RU se concedeu essa possibilidade aos escoceses. É que ou muito me engano, ou a maioria daqueles que residem na Catalunha acabará por escolher permanecer na Espanha, fruto da falta de pachorra com a constante manutenção desta questão na agenda. Há imensos problemas, económicos, ambientais, que requerem a colaboração dos povos dentro dos Estados e entre os Estados. Não vejo sinceramente qual a necessidade de agora se ir abrir mais uma ferida e criar um problema que de facto não existe numa sociedade democrática moderna como a espanhola...

R. disse...

A comparação justifica-se pois trata-se da lei fundamental de um país, e em termos históricos, no nosso caso, todas formalmente se equiparam, embora as circunstância de cada uma sejam diferentes.
Tratando-se da lei fundamental, não pode, legitimamente, sobrepor-se à Carta das Nações Unidas.
Como já uma vez lhe disse, o critério legalista faria com que, por exemplo, ou estivéssemos ainda sob o domínio espanhol ou, conseguindo independência de facto, só deixássemos de ser um estado fora da lei quando a Espanha reconhecesse de jure a situação de facto -- o que ocorreu em 1668. E Angola também seria 'nossa'.
A inteligência e o bom senso mandam que se siga o exemplo escocês.
Os problemas económicos e ambientais, ou quaisquer que eles forem, são outro assunto. Não devemos misturar alhos com bugalhos.
É natural que não veja a necessidade, já que não é catalão.

Jaime Santos disse...

A carta da UN faz parte da ordem jurídica dos Estados que a assinaram, mas não se sobrepõe a essa mesma ordem, se bem entendo o Direito Internacional. Essa carta não pode ser entendida como uma espécie de Constituição Universal, que não o é (até porque não existem instâncias que assegurem esse direito à auto-determinação, esse processo é sempre político e por vezes militar). Assim sendo, o Governo Espanhol está só a cumprir a sua obrigação ao pedir ao TC que esclareça se uma parte do seu território pode declarar unilateralmente a Secessão. Se o critério legalista se irá ou não sobrepor à política é algo que veremos, mas faço notar que nem todos os processos de Secessão são justos (o caso mais gritante é o dos Estados Confederados do Sul nos EUA). Os problemas económicos ou ambientais são seguramente outro assunto, mas o bom senso indica que, se o processo independentista for para a frente, a Espanha e a Catalunha passarão uma boa parte do seu futuro próximo a degladiar-se sobre isto, e a própria Catalunha será obrigada a ir para a fila para se juntar à UE (e a Espanha poderá bem colocar entraves e está no seu direito). Ora, duvido pois que quem consome o seu tempo a discutir esta questão possa resolver outros problemas mais prementes (na minha modesta perspetiva). Quanto a ver ou não ver a necessidade, não é nada natural que eu tenha esta opinião. O meu caro tem a oposta e também não é catalão. Um catalão unionista poderia perfeitamente perguntar-lhe por que se está a imiscuir nos assuntos da Espanha...

R. disse...

Há ou não um direito (e um dever) de autodeterminação? Há, e tanto se aplica aos catalães, como aos tibetanos, aos curdos como ao tchetchenos ou aos escoceses.
Deve ou não um povo poder exercê-lo? Deve, nem que seja para decidir ficar como está.
Está ou não o povo catalão nessas condições? Claramente, por voto da maioria dos seus representantes, que poderá, ou não, ser ratificada em referendo.
É ou não o estado Espanhol o resultante duma coerção, em que os povos periféricos são compelidos a integrá-los, queiram-no ou não? Sim.

Não creio que a Guerra da Secessão possa ser comparável, por óbvias diferenças de natureza.
Dizer que há outras prioridades, seria (levando os seu argumento à caricatura e fazendo um paralelo tão discutível como o da Guerra da Secessão) -- seria como defender que o MPLA antes de proceder ao assalto à fortaleza de Luanda, antes de resolver-se o saneamento básico da cidade.
Aliás, o exemplo da Ada Colau como presidente do município de Barcelona parece contrariar o que sustenta.

Quanto a imiscuir-me, enfim... não sou nenhum órgão oficial, mas apenas um indivíduo sem poder nem influência que tentou pensar sobre a forma como o estado português deve lidar com a situação, se e quando esta evoluir para algo que para já desconhecemos.

Jaime Santos disse...

Não existe nenhuma opressão dos Catalães, já que estes têm exatamente os mesmos direitos do resto dos espanhóis e a Espanha é uma sociedade plenamente democrática (o que quer dizer que se rege por regras). O que a Constituição aparentemente lhes nega é o direito de Secessão (e isso a ver, já que o TC Espanhol deve ainda decidir, embora se espere que a decisão vá no sentido de declarar o referendo como ilegal). E todo o argumento é ridículo se puxado até à caricatura (é esse o objetivo dela). Deverá admitir que um processo independentista irá criar inúmeros problemas para os Catalães, para a Espanha, para a Europa e, já agora, para nós, já que a Espanha é o nosso principal parceiro comercial. Convenhamos que ninguém precisa desses problemas quando há outros bem mais graves a resolver. Agora, eu espero que os Espanhóis e os Catalães encontrem uma forma pacífica de resolver este problema, se necessário recorrendo ao referendo (mas marcá-lo para 1 de Outubro parece-me mais uma provocação do que outra coisa qualquer). E, enquanto a discussão se mantiver num nível estritamente político, Portugal não tem nada que se intrometer, veja lá o que diríamos se os Espanhóis falassem na autodeterminação da Madeira, exceto talvez eu, que se calhar a apoiaria. Mas, se se chegar a tal, os Catalães deverão entender que, mesmo com a maior boa vontade pela parte de todos, a independência não se obterá sem avultados custos... Parece-lhe que este tipo de debate se pode fazer em tão pouco tempo? A mim não me parece nada... O que me parece é que os líderes independentistas catalães querem antes criar um 'fait accompli' em que depois se possam fazer de vítimas...

R. disse...

Meu caro, esquece-se de um 'pormaior' fundamental: a constituição espanhola foi aprovada num contexto de transição para a democracia, na sequência da morte do Franco, e de causar o mínimo de perturbação no equilíbrios frágeis das forças em presença. (O golpe tentado de '81 aí está para o demonstrar).

Ora, como a Catalunha é um país ocupado há séculos, com guerras independentistas sempre malogradas (a ela, de resto, devemos o êxito da nossa Restauração...) e como, nos períodos não democráticos, essas tentativas foram sempre rechaçadas violentamente (volto a lembrar o fuzilamento do presidente da Generalitat em 1939), não há qualquer legitimidade democrática para impedir que um povo se autodetermine. Creio que isto é evidente.

Quanto aos problemas: os catalães é que sabem com o que querem arrostar, não há nada que saber quanto a isso. E quanto à intromissão, diz exactamente o mesmo que eu no post. No entanto, o exemplo da Madeira parece-me mal escolhido: os madeirenses são e sentem-se portugueses, como os algarvios, os açorianos ou os transmontanos. Nunca foram independentes, como os catalães, nem têm outra língua que não a portuguesa. Aliás, até acho que na Descolonização, os povos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe deveriam ter sido consultados, uma vez que, tal como os Açores e a Madeira, e ao contrário das restantes colónias, aquelas ilhas estavam desertas quando lá chegámos, não existindo um povo autóctone.

A questão do 1 de Outubro: é um debate que leva séculos, e a única forma de suscitar uma mudança desejada pelos independentistas é forçá-la institucionalmente. Não lhes foi dada outra opção... Em 1640 defenestravam-se os representantes do Ocupante; hoje, recorre-se à táctica política.

Jaime Santos disse...

Diria que o meu caro é provavelmente da zona sul do País, porque aqui pelo Norte não iria longe com esse argumento de que nos sentimos todos muito Portugueses só porque falamos todos a mesma língua. O ressentimento, justificado ou não, em relação a Lisboa, sente-se bem por estas bandas. Não acho nada que seja assim tão claro que nuns casos o separatismo se justifica enquanto não se justifica noutros. Depois, preocupam-me mais as garantias de direitos individuais do que esse direito coletivo à autodeterminação. A Espanha atual, mau grado a conjuntura que lhe deu origem, é um Estado que dá todas as garantias e direitos aos seus cidadãos. Não tenho a certeza disso em relação a uma Catalunha independente, em particular em relação àqueles que não apoiam a independência. E, certamente, tais questões não serão esclarecidas em tão curto espaço de tempo. Quanto à posição portuguesa, sim concordámos, exceto que eu não acho que tenhamos que nos intrometer se o Governo Espanhol avançar para um bloqueio jurídico (seja lá o que isso for exatamente). Só numa situação de ocupação militar e negação de direitos individuais é que isso se poderia justificar...

R. disse...

Nunca senti ressentimento no Norte, nem no Porto e muito menos em Braga. Bom, mas trata-se do mesmo povo, de questões regionalistas ou centralistas. Ali, não. O receio quanto aos direitos individuais é um fantasma que se agita sem razão de ser, atendendo às forças em presença.
Exacto, quanto ao nosso papel na eventualidade.